Autodeterminação informativa, LGPD e impactos na educação digital

A Política Nacional de Educação Digital (PNED), lei 14.533/23, foi instituída em 11 de janeiro de 2023, com o objetivo de impulsionar os resultados das políticas públicas destinadas ao acesso de recursos, ferramentas e práticas digitais pela população brasileira, priorizando aos populações mais vulneráveis. A normativa é destinada a projetos e ações de diferentes entes federados, áreas, setores governamentais, além daqueles destinados à inovação e à tecnologia na educação, que tenham apoio técnico ou financeiro do governo federal1.

A PNED é um marco para a normativa dos direitos digitais no Brasil, porque se estrutura e objetiva atingir atuar nos seguintes eixos: inclusão digital, educação digital escolar, capacitação e especialização digital e Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Assim, a PNED reafirma obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), nos arts. 13 e 142, e a Convenção sobre os Direitos da Criança, nos arts. 28 e 293.

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Além de ser um direito humano específico, o direito à educação ainda permite a realização de outros direitos, desempenhando papel decisivo no exercício da cidadania e emancipação. Porém, como determina o Objetivo ODS-4 dos (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) da ONU (ODS), para que a educação execute o seu papel transformador, é necessário que ela seja inclusiva, equitativa e de qualidade, promovendo efetivamente oportunidades de aprendizagem, considerando as condições específicas de cada ser humano4.

Assim, a PNED soma-se às iniciativas que devem ser tomadas para que o abismo digital no Brasil seja modificado. Atualmente, o Brasil apresenta índices de desigualdade elevados no que concerne à inclusão digital, com 41,8 milhões de brasileiros sub conectados sub conectados à internet e 33,9 milhões ainda desconectados. Isso significa uma grande limitação do uso de recursos de tecnologia pela população, que não usufrui plenamente das oportunidades do ambiente on-line não só para a educação, mas para o exercício da cidadania, aumento da produtividade em negócios e inserção no mercado de trabalho5.

Diante da instituição da PNED nesse contexto, quais são as interfaces com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), lei 13.709/18, sobretudo, considerando o fundamento da autodeterminação informativa?

Atualmente, em se tratando de educação, a distância é menos geográfica e mais econômica, cultural, social e tecnológica, diante do nível de acesso e domínio das tecnologias de comunicação6. Por isso, além das teorias, é preciso avaliar as realidades concretas para a maior eficácia dos eixos da PNED.

O eixo da inclusão digital, previsto no art. 2º, tem como estratégias prioritárias a promoção de competências digitais e informacionais, com treinamentos, incluídos os grupos de cidadãos mais vulneráveis, além da facilitação ao desenvolvimento e ao acesso a plataformas e repositórios de recursos digitais7.

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Porém, concretizar a inclusão de pessoas que precisam de medidas educativas diferenciadas exige muito mais do que apenas possibilitar inserções de contexto ou espaço físico. Na educação básica, por exemplo, é necessário que sejam estabelecidos atendimentos diferenciados de acordo com as necessidades reais de cada aluno ou aluna, e que profissionais sejam igualmente contemplados pela capacitação digital8. Não se trata de disponibilizar apenas equipamentos ou internet, mas saber utilizá-los com adequação e respeitando boas práticas, assegurando  a segurança da informação.

Quanto as interações na internet, é essencial que a acessibilidade digital seja atendida, proporcionando que os sites e portais, privados ou governamentais, sejam construídos para que todas as pessoas possam perceber, entender, navegar e interagir na web de maneira efetiva. Considerando os propósitos da PNED, obstáculos às pessoas com deficiência ou grupos com outras condições, como idosos, devem ser cada vez mais desarticulados.

Já em relação ao eixo educação digital, previsto no art. 3º, o objetivo formulado é a inserção da educação digital nos ambientes escolares, mediante o estímulo ao letramento digital e informacional e à aprendizagem de computação, de programação, de robótica e de outras competências digitais. Isso envolve tanto aprendizados sobre hardware e software, estruturação do ambiente digital, pensamento computacional, desenvolvimento para criar e adaptar algoritmos; quanto um elemento que está diretamente relacionado com a proteção de dados pessoais:

IV – direitos digitais, que envolve a conscientização a respeito dos direitos sobre o uso e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), a promoção da conectividade segura e a proteção dos dados da população mais vulnerável, em especial crianças e adolescentes9.

Por consequência lógica, a educação digital prevista na PNED, não deixou de englobar a necessária difusão da cultura da privacidade, segurança da informação e conhecimentos sobre a LGPD. Nesse aspecto, é importante considerar que a LGPD, que regula o tratamento de dados pessoais e adiciona à proteção da privacidade diferentes direitos aos titulares, possui como um dos fundamentos à autodeterminação informativa, prevista no art. 2º, inciso II10.

De acordo com o Departamento de Direito Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA), a autodeterminação informativa corresponde à possibilidade de o indivíduo decidir a quem, quando e em que limites compartilhará aspectos da sua vida privada, incluindo os seus dados pessoais. Ou seja, a autodeterminação informativa engloba os direitos básicos sobre o conteúdo de suas informações pessoais, a forma como estão sendo processadas, a possibilidade de exigir sua atualização, solicitar sua correção, entre outras11. Nesse sentido, no exercício da autodeterminação informativa, o indivíduo possui o poder legítimo sobre os seus dados pessoais e privacidade.

Na LGPD, diferentes disposições oportunizam essa garantia, a exemplo das obrigações de transparência e, principalmente, dos direitos dos titulares previstos no art. 17, que garantem os direitos de acesso, exclusão, alteração e informações sobre os dados pessoais estão sendo tratados pelos agentes de tratamento, entre outras possibilidades.

Isso permite considerar que a PNED poderá contribuir com a efetividade da LGPD e democratizar a cultura da população brasileira em privacidade, tanto pelos seus propósitos quanto pela previsão expressa de incluir na educação digital os direitos digitais, a conscientização sobre LGPD, os conhecimentos técnicos sobre tecnologia, e a promoção da conectividade segura. Isso porque determina a promoção de ações públicas de equidade, para que os cidadãos desenvolvam a educação digital e conheçam os seus próprios direitos de privacidade, o que fortalece o  exercício da autonomia individual e dá suporte ao fundamento da autodeterminação informativa.

De nada adianta pressupor que todos os titulares já conhecem os direitos assegurados na LGPD e os exercem em igualdade de condições, se a realidade do Brasil na educação e inclusão no âmbito digital é marcada por déficits consideráveis. Além disso, a incorporação da conscientização em proteção de dados pessoais ainda está se consolidando no contexto brasileiro, junto com os investimentos em acessibilidade pelos agentes de tratamento, a fim de garantir que o exercício dos direitos dos titulares e a transparência atendam modelos regulatórios e operacionais acessíveis. Assim, A PNED reforça que o acesso às tecnologias da informação e comunicação são fundamentais para a construção de uma igualdade material digital na sociedade brasileira12.

Porém, apesar das previsões trazerem boas soluções teóricas ao gravíssimo problema educacional digital do Brasil, no momento em que os programas educacionais estiverem sendo implementados, deverá ser levado em consideração interesses e a condição subjetiva e material dos sujeitos. Isso significa avaliar suas características específicas, fatores sociais e suas experiências na vida. As gestões cuja PNED se aplica precisarão compreender as novas demandas educacionais, culturais e sociais impactadas pelo mundo digital, incentivando debates e difundindo a capacitação digital entre os docentes, de forma que seja possível atingir positivamente alunos, alunas e cidadãos.

De outro lado, diante dos desafios  presentes e, sobretudo, futuros da PNED, caberá aos agentes de tratamento de dados, comumente empresas privadas e públicas, se comprometerem cada vez mais com a LGPD, estabelecendo nas suas boas práticas e na governança em privacidade a atenção para a acessibilidade by design e by default. Como se sabe, ter a acessibilidade como pressuposto básico  e a adoção de medidas como essas podem não só mitigar riscos, mas trazer um alto valor para as organizações, em termos de visibilidade, diversidade e aumento do alcance do público, beneficiando os negócios, as relações com stakeholders e o desenvolvimento social.


1. BRASIL. Lei 14.533, de 11 de janeiro de 2023. Institui a Política Nacional de Educação Digital. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14533.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2014.533%2C%20DE%2011%20DE%20JANEIRO%20DE%202023&text=Institui%20a%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de,30%20de%20outubro%20de%202003. Acesso em: 25 jan. 2023.

2. BRASIL. Decreto 591 de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

3. BRASIL. Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção dos Direitos da

Criança. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

4. NAÇÕES UNIDAS. ODS 4 – Educação de Qualidade. Disponível em: https://www.estrategiaods.org.br/conheca-os-ods/. Acesso em: 25 jan. 2023.

5. PWC BRASIL. O abismo digital no Brasil. Como desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam as nossas opções para o Disponível em: futuro.https://www.pwc.com.br/pt/estudos/preocupacoes-ceos/mais-temas/2022/O_Abismo_Digital.pdf. Acesso em 25 jan. 2023.

6. MORAN, José. Como utilizar a Internet na educação: relatos de experiências. Ciência da Informação, v. 26, n. 2, p. 146-153, Brasília, maio/ago., 1997.

7. BRASIL. Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção dos Direitos da Criança. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

8. ABENHAIM, Evanir. Os Caminhos da inclusão: breve histórico. In: MACHADO, Adriana Marcondes; VEIGA NETO, Alfredo José da Veiga Neto; SILVA, Marcos Vinícios Oliveira Silva; PRIETO, Rosangela Gavioli; ABENHAIM, Evanir. RANÑA, Wagner. Psicologia e Direitos Humanos: Educação Inclusiva, direitos humanos na escola. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

9. BRASIL. Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção dos Direitos da Criança. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

10. BRASIL. Lei 13.709/18 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 20 jan. 2023.

11. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Departamento de Direito Internacional. Proteção de Dados Pessoais. Glossário – Autodeterminação Informativa. Disponível em: https://www.oas.org/es/sla/ddi/proteccion_datos_personales_glosario.asp. Acesso em: 25 jan. 2023.

12. BRANDÃO, Marco. Dimensões da inclusão digital. São Paulo: All Print Editora, 2010.


Bruna Marques da Silva
Advogada da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

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