O falso paradoxo entre proteção de dados e eficiência no setor público

Os inegáveis avanços decorrentes da inclusão da proteção de dados pessoais como direito fundamental na Constituição e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) afetam o setor público sob diversas óticas. Teoricamente, a nova ordem jurídica que resguarda a proteção de dados estaria alheia aos problemas fiscais que assolam o país. Na prática, contudo, interpretações equivocadas sobre as novas regulamentações impactam diretamente a eficiência e a efetividade da atuação estatal, atributos inafastáveis do gasto público, sobretudo em um contexto de crise.

As regulações sobre a privacidade são motivadas pelo uso intensivo dos dados pessoais na nova economia, dado o seu indiscutível valor econômico e social. A existência de muitos negócios depende da prerrogativa para utilizar e combinar esses dados, entre si e com outros, para diversificar, qualificar e melhor direcionar produtos e serviços ofertados. Nesse contexto, resguardar a privacidade dos cidadãos em relação aos seus próprios dados é fundamental, sendo esse o propósito maior da LGPD.

Contudo, ao ser aplicada no setor público, a regulação expõe um paradoxo entre o esforço incontestável para proteger os dados e a necessidade de transformá-los em decisões, estratégias e políticas públicas. De um lado, proteger os dados dos cidadãos é imprescindível para preservar direitos. De outro lado, utilizá-los de maneira segura em prol do interesse público é uma obrigação.

Os dados públicos, aqueles que pertencem à população e são custodiados pelas instituições públicas, são muito valiosos enquanto insumos para formulação de políticas públicas e instrumentos de transparência da atuação estatal. Para isso, é preciso que sejam utilizados responsavelmente pelos atores envolvidos nesses processos, sendo compreendidos, catalogados, utilizados, integrados e compartilhados em prol do cumprimento de outro princípio constitucional, o da eficiência.

Um dos maiores exemplos da imprescindibilidade de dados para a atuação estatal é o Censo nacional. Trata-se da mais tradicional e fundamental fonte de dados básicos para o entendimento do país e, por conseguinte, para a formulação de políticas públicas de qualidade. Nesse sentido, o adiamento da edição que deveria ter ocorrido em 2020, para 2022, combinado com as intensas transformações ocorridas no país na década de 2010 e aprofundadas com a pandemia de Covid-19, fragiliza e prejudica a obtenção de dados atualizados sobre a sociedade e os seus problemas, indispensáveis à atuação do Estado.

Pior do que não possuir as informações é não conseguir utilizá-las. O cumprimento da LGPD tem exigido adequações tanto na esfera privada quanto na pública. Progressivamente, as empresas têm buscado soluções para que possam, a um só tempo, cumprir o direito fundamental e valer-se de insumos preciosos para suas estratégias. No setor público, contudo, é possível verificar tendências diferentes, embora não generalizadas.

As dificuldades ao cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados têm sido levantadas como obstáculos ao uso de informações pelas instituições públicas. Tal fato demonstra desconhecimento da própria regra, que prevê particularidades da sua aplicação no setor público. Também pode evidenciar tanto despreparo como desinteresse no manejo de dados essenciais para a atividade estatal.

Trabalhos do Tribunal de Contas da União (TCU) demonstram o impacto que a falta de compartilhamento de informações impõe sobre os gastos e a eficiência de políticas públicas fundamentais ao país. No Acórdão 2.141/2021-TCU-Plenário, o órgão de controle apontou riscos no Programa Informatiza APS, que tem como objetivo apoiar a informatização dos estabelecimentos de saúde que compõem os pontos de atenção à saúde, iniciando pela Atenção Primária à Saúde. Na fiscalização, constatou-se que a qualidade das informações recebidas não era controlada, de modo que informações “imprestáveis para a decisão clínica” poderiam ocasionar repasses indevidos no âmbito do programa.

Em outra decisão recente, Acórdão 1.055/2021-TCU-Plenário, o TCU identificou e mensurou falhas na gestão de folhas de pagamento de pessoal da Administração Pública Federal. A partir de cruzamentos de dados das folhas de pagamento, incluindo estados e municípios, com outras bases de dados, foi possível identificar e evitar pagamentos indevidos da ordem de R$ 386 milhões ao ano.

A fiscalização comprova que o acesso a dados e informações, em maior quantidade e qualidade, é uma ferramenta essencial para a eficiência da gestão e o controle dos recursos públicos. Contudo, os dados e as informações utilizados pelo TCU muitas vezes não estão disponíveis aos gestores públicos.

Para além disso, como o relatório da auditoria realça, “embora conte com várias normas regulamentadoras, a gestão das folhas de pagamento da Administração Pública Federal ainda padece de falhas estruturantes, tal como a falta de integração dos dados das despesas com pessoal da União com os dados dos demais entes da federação”.

Com efeito, o problema de governança de dados é sistêmico e precisa ser endereçado. Em outra decisão recente (Acórdão 2.279/2021-TCU-Plenário), o TCU descreveu um conjunto de dificuldades estruturantes que impede o compartilhamento de dados entre as instituições de Estado. Há que se avançar em questões como processos de categorização de dados, constituição de comitês, estabelecimento de gestores de dados e autorização de acesso.

As dúvidas e inseguranças que surgem na interpretação da LGPD são evidências do estágio incipiente das atividades básicas de governança de dados. Ao invés de gerenciar o risco de vazamento das informações, esse risco acaba sendo usado como justificativa para paralisar o seu fluxo interorganizacional. Ou seja, o cumprimento da LGPD se transforma em argumento para impedir a interoperabilidade e a integração de sistemas para fins de aprimoramento da gestão de políticas públicas fundamentadas em dados, evidências e serviços preditivos no âmbito da Administração Pública Federal.

Porém, impor dificuldades genéricas para o uso dos dados acarreta o descumprimento de outras leis de mesma hierarquia da LGPD, como a Lei de Acesso à Informação (dez anos mais antiga) e a Lei de Governo Digital (Lei 14.129/2021). Por oportuno, deve-se lembrar que esta última vincula expressamente a eficiência administrativa ao uso correto de dados e ferramentas tecnológicas.

A ausência de dados e o analfabetismo digital de gestores possuem impacto fiscal, decorrente da perda financeira e operacional nas políticas e serviços desenhados ou geridos a partir de uma baixa maturidade estatal na gestão baseada em evidências. Há que se consolidar a percepção de que os benefícios do consumo intensivo e responsável dos dados pelas instituições públicas se sobrepõem aos riscos inerentes a essa manipulação. Enquanto o mal uso da informação é inaceitável, o seu bom uso é obrigatório.

O equivalente ao lucro das empresas decorrente do uso de informações valiosas pelo Estado é o aumento da eficiência e da efetividade, que também pode ser medido monetariamente. Elas se somam a outro efeito colateral positivo: o aumento da confiança junto à sociedade. É preciso garantir um fluxo constante e protegido de dados entre os atores institucionais do Estado e com a sociedade como participante ativa. Do contrário, estaremos diante de uma administração pública que consegue até enxergar bem os riscos, mas que colhe poucos benefícios da Era da Informação e, pior, desperdiça parte relevante deles.

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